A revolta da Maria da Fonte de 1846 e a guerra civil esquecida que incendiou o Minho
Em 1846, o Norte de Portugal ergueu-se em fúria contra o poder de Lisboa. A revolta da Maria da Fonte, nascida nas aldeias do Minho, começou como um protesto contra leis impopulares e acabou por transformar-se numa guerra civil esquecida, que pôs o país à beira do colapso. Foi um dos mais intensos movimentos populares do século XIX português, marcado por uma energia crua e por uma raiva coletiva que uniu camponeses, soldados, padres e mulheres contra um governo visto como tirano e distante.

A origem do levantamento remonta às reformas do governo de Costa Cabral, um político liberal que procurava modernizar o Estado através de medidas centralizadoras. As novas leis administrativas e fiscais impunham um controlo apertado sobre as autarquias, aumentavam os impostos e, sobretudo, tocavam em tradições profundamente enraizadas. Entre elas, estava a proibição de enterrar os mortos dentro das igrejas — uma medida de saúde pública que, para as populações rurais, parecia um ultraje religioso e moral.
Foi no Minho, em março de 1846, que a faísca se acendeu. Em Lanhoso, uma mulher de nome desconhecido — mais tarde imortalizada como Maria da Fonte — liderou um grupo de camponesas que armadas com varapaus e foices impediram as autoridades de cumprir a nova lei. O seu gesto foi o sinal que faltava: em poucos dias, centenas de aldeias seguiram o exemplo, e o Norte inteiro incendiou-se.
As multidões atacavam as casas dos funcionários públicos, libertavam presos, destruíam registos fiscais e gritavam palavras de ordem contra Costa Cabral. O movimento cresceu com uma rapidez impressionante, envolvendo não apenas o povo rural, mas também militares descontentes e clérigos que viam nas reformas uma afronta à Igreja. As forças governamentais tentaram conter a revolta, mas foram repetidamente derrotadas por camponeses decididos e conhecedores do terreno.
O governo acabou por cair. A rainha D. Maria II, assustada com a dimensão do levantamento, demitiu Costa Cabral e nomeou um novo executivo mais conciliador. Mas a paz foi breve. As divisões políticas entre cartistas e setembristas reacenderam-se, e a instabilidade culminou, meses depois, na chamada Patuleia — uma verdadeira guerra civil que opôs o exército ao povo armado. Durante quase um ano, o país mergulhou no caos, com combates em Braga, Porto, Coimbra e Lisboa.
A revolta da Maria da Fonte foi, no fundo, o grito de um país cansado de ser governado de cima para baixo. Uma revolta feita de fé, pobreza e orgulho, que mostrou a força do mundo rural e a fragilidade das elites liberais. Apesar da violência e da desordem que provocou, deixou uma marca profunda na consciência nacional: lembrou que o povo, quando o sentia justo, podia desafiar o poder e mudar o curso da história.
Hoje, Maria da Fonte é lembrada como símbolo da coragem popular, mas por detrás da lenda ficou a realidade amarga de uma guerra civil quase apagada da memória — um tempo em que o Minho ardeu em nome da dignidade, e Portugal voltou a lutar consigo mesmo.